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ENGENHO E OBRA
Termina por estes dias no edifício da Cordoaria Nacional, na Junqueira (Belém), em Lisboa uma exposição notável. Intitula-se ''Engenho e Obra'' e mostra uma panorâmica da engenharia em Portugal (e não engenharia portuguesa, frise-se bem!) no século vinte.

Passei por lá noutro dia, antes que fechasse. A mostra, que esteve pouco tempo, é irrepetível... Fiquei impressionado. Havia multidões de grupos de jovens, nomeadamente de grupos escolares, que faziam bichas enormes para entrar. A exposição em si está muito bem montada, nomeadamente a sua concepção e design com a marca inconfundível de Henrique Cayatte (o autor gráfico de uma outra grande exposição no mesmo local sobre a transição para a democracia em Portugal). Os espaços correspondentes a várias formas de engenharia estão construídos de forma a proporcionar o ambiente adequado: à secção de autoestradas tem-se acesso por uma “via verde” e na secção das florestas está-se no meio de uma delas. Peças interessantes do nosso espólio tecnológico (destaque-se o primeiro computador português, o Ener 1000, feito na Universidade de Coimbra) cohabitam no grande “corredor” da Cordoaria com peças modernas que exemplificam alguns processos de produção (por exemplo, um troço de uma linha de montagem de uma moderna fábrica de sapatos). Maquetas, filmes e simulações interactivas prendem a atenção do visitante (a simulação mais conseguida talvez seja a do enchimento e desenchimento da barragem do Alqueva). Inscrições e quadros fornecem a necessária informação complementar. Os jovens iam parando em cada “estação” prestando atenção às explicações prestadas por monitores, outros jovens embora um pouco mais velhos, vestidos com fatos-macacos brancos da Somague (passe a boa publicidade à empresa que, neste tempo de crise, quis ser o patrocinador principal). Pelo ar havia um pouco do espírito da Expo... No fim tive vontade de ver novo, o que consegui, pois o simpático funcionário, vendo a chuva lá fora, permitiu que voltasse a ver a exposição, agora às arrecuas...

O que achei mais interessante da exposição? Talvez por ser físico computacional, a simulação da reacção industrial de produção do alumínio que era projectada no chão do pavimento, a partir do tecto, obrigando os visitantes a passar por cima. Visulamente era bem conseguida. Uma monitora elucidava como era e no fim a juventude pisava as moléculas, interaccionando com a química de uma maneira inabitual (os que detestam a química pisavam-na e os que adoram pulavam com ela). Mas, do ponto de vista expositivo, achei muito bem conseguida a colocação de uma viatura Sharan da fábrica Auto-Europa, a meio da sua linha de montagem, assim como a colocação de um carro como que tirado de um cemitério de automóveis, que nos lembra a questão, tão premente na nossa sociedade industrial, dos resíduos.

Mas, ainda mais interessante do que isso, é o facto, que talvez passe despercebido a alguns visitantes, que não se trata apenas de uma exposição mas de todo um projecto, dirigido pelo professor do Instituto Superior Técnico (uma grande escola da Engenharia em Portugal, a maior e a que tem mais tradição) Manuel Heitor, que se refere ao estudo da evolução da engenharia em Portugal. Esse trabalho estava – e está em larga medida – por fazer! Uma vasta equipa, que reúne engenheiros, historiadores e sociólogos, está a fazer um trabalho sério que dará os seus frutos. Apesar de alguns sucessos, que são postos em evidência na exposição (um evento como este tem sempre tendência a cantar as glórias!), o nosso país tem conhecidas debilidades históricas no que respeita à importação de tecnologia e, ainda mais, à criação de nova tecnologia. Manuel Heitor diz-se motivado pelo estudo dos processos de inovação. É de isso que precisamos: conhecer melhor as condições de inovação para as podermos concretizar, lançando oportunidades de desenvolvimento. Além da exposição e das visitas das escolas, o projecto inclui como “produtos” um conjunto de publicações que exigem trabalho investigativo (das quais, aparentemente, só saiu a primeira, uma história da engenharia em Portugal no século vinte, que não é bem um catálogo da exposição), um conjunto de colóquios sobre os assuntos tecnológicos mais diversos, um sítio na Internet (que se recomenda a todos os interessados: http://www.engenharia.com.pt/ ), filmes (um deles, da responsabilidade de Diana Andringa, é exibido no final da exposição, tendo já passado na RTP2), etc.

Reparos críticos que se poderiam fazer à exposição são a pouca ligação que se nota entre tecnologia e ciência (excepto talvez no caso da simulação do amoníaco, em que o processo fundamental da fábrica química é explicitado) e a falta atempada de um catálogo que permita ao visitante levar a exposição para casa (ou, pelo menos, de um prospecto que contenha o essencial da exposição a um preço módico; só vi um jornal da exposição, que era gratuito). Nenhum destes reparos desmerece, como é evidente, o valor enorme da exposição.

Mas há um reparo maior que se terá de fazer se a exposição fechar como está previsto e todo o seu material regressar ao anonimato. É que o que ali vi, e o que ali muita gente viu, merece figurar, se não na totalidade pelo menos em boa parte, num Museu da Ciência e da Técnica, ficando à disposição permanente do público. A mostra provisória merece ser definitiva. Todos os países que se prezam têm um museu nacional de ciência e tecnologia (lá está, a ciência “casada” com a tecnologia, para que a sociedade perceba melhor uma, a outra e a ligação nem sempre simples entre as duas). Portugal também tem, pelo menos nominalmente, um Museu Nacional da Ciência e da Técnica, que desde há pouco ostenta o nome do seu fundador, o Prof. Mário Silva (físico da Universiade de Coimbra que sonhou esse projecto nos anos setenta) e que desde há pouco tem um novo director, Paulo Gama Mota. Na minha opinião, o espólio mostrado nesta exposição, com uma eventual remontagem, devia estar, naturalmente junto com outro, num grande Museu Nacional da Ciência e da Técnica. O Museu fundado pelo Prof. Mário Silva tem sido esquecido pelos sucessivos poderes públicos, circunstância a que não deverá ser alheia a sua localização em Coimbra. Alguns locais têm culpa nessa situação: nesta ocasião, é necessário protestar alto e bom som contra a insensibilidade da “Coimbra 2003 Capital Nacional da Cultura” às questões da ciência e da tecnologia, tão bem patente na relação que não soube nem sabe estabelecer com o Museu Nacional da Ciência e da Técnica. Apesar da manifesta falta de cultura de algumas entidades (e esta capital já nos deu provas bastantes da sua incultura!), é de todo injustificável o esquecimento a que o Museu tem sido votado pelos poderes públicos. O actual governo, em conjunto com a Câmara Municipal de Coimbra e a Universidade de Coimbra, têm responsabilidades fortes não apenas para com a memória do passado mas principalmente para com o futuro.

Não penso que o país seja assim tão rico e tenha uma tão forte tradição de ciência e tecnologia. Não acredito por isso que possa haver vários grandes museus com importantes conteúdos tecnológicos. São muito interessantes e úteis os vários centros de ciência que o programa Ciência Viva está a espalhar pelo país. Mas é preciso uma coisa maior. Há, de facto, o Pavilhão do Conhecimento no Parque das Nações, em Lisboa, que tem sido dedicado a exposições interactivas, mas que não tem espaço para crescer mais do que aquilo que, com bastante mérito, já é. É preciso um Museu Nacional da Ciência e da Técnica. Não percebi, nunca percebi, por que é que tudo tem de ser em Lisboa ou no Porto. Mas, se acaso os poderes não querem o Museu Nacional da Ciência e da Técnica em Coimbra, então que o façam em Lisboa (onde há o belo edifício à beira Tejo da Central Tejo, perto da Cordoaria, só em parte ocupado pelo Museu da Electricidade) ou no Porto (onde há o Museu dos Transportes e Comunicações, no belo edifício à beira Douro da Alfândega, e onde, dizem, vai haver um Museu da Indústria, na zona do Freixo, aproveitando espólio que já foi mostrado em Vila da Feira). Mas que o façam, que existem conteúdos e muita gente estará disponível para ajudar.

A exposição “Engenho e Obra”, entre outras virtudes, teve também a de nos chamar a atenção para a necessidade de Portugal ter um grande museu em que guarde e exiba o acerbo das suas indústrias. Onde mostre o seu engenho e exiba a sua obra.

tcarlos@teor.fis.uc.pt
http://nautilus.fis.uc.pt/~cfiolhais

Carlos Fiolhais (Físico)
[in Primeiro de Janeiro de 03.03.2003]