Autoeuropa, passar por baixo do casco de um navio, assistir à actuação de um robô de pesquisa submarina, entrar pela boca de uma mina ou debruçar-se do alto de um viaduto são experiências pelas quais o comum dos mortais não costuma passar. Muito menos de seguida e num só dia. Mas tudo isto será possível durante a visita à exposição «Engenho e Obra» que abrirá a 8 de Janeiro na Cordoaria Nacional. Concebida para celebrar os feitos da engenharia em Portugal durante o século XX, vai estender-se ao longo dos 300 metros do mais comprido edifício de Lisboa. Henrique Cayatte, «designer» da exposição, não esconde o entusiasmo pelo projecto, de resto já muito próximo da fase mais crítica, a da montagem. «Ao fim destes meses de trabalho apercebi-me a que ponto a engenharia é uma disciplina total, na medida em que atravessa todas as áreas da vida das pessoas». De resto, o que está em causa não é uma suposta «engenharia portuguesa», bacteriologicamente pura e confinada ao recanto lusitano mas sim «a aventura da engenharia em Portugal, assumindo todas as influências, nomeadamente as vindas do estrangeiro, ou seja, assumindo a transumância do saber». Durante muitos meses, uma vasta equipa, coordenada por um comissariado de que fazem parte Manuel Heitor (professor do Instituto Superior Técnico), Brandão de Brito (docente do Instituto Superior de Economia e Gestão), Fernanda Rollo (investigadora da Universidade Nova) e ainda Renato Trincão, Rui Trindade, José Pessoa e o próprio Henrique Cayatte, procedeu ao levantamento dos objectos e imagens com interesse para o projecto. Mais de uma centena de investigadores percorreu o país visitando fábricas, estaleiros ou portos. Estudou-se a hipótese de diferentes espaços mas conclui-se que a Cordoaria era o que mais se adequava às características pretendidas. Henrique Cayatte e a maqueta de um dos sectores da exposição: a celebração dos feitos de engenharia no século XX De tudo isto resultou uma exposição desdobrada em cinco núcleos principais, correspondendo a outras tantas áreas do conhecimento e da tecnologia e que vão dos portos às minas, metalurgia, electricidade, química, etc. A separar os diferentes núcleos, cinco rotundas, cada uma das quais dedicada a engenheiros que se foram sucessivamente notabilizando ao longo do século passado: Ezequiel de Campos, Duarte Pacheco, Ferreira Dias, Manuel Rocha e Edgar Cardoso. Em cada um destes separadores existirá uma cronologia que dará o contexto histórico de cada uma das épocas consideradas, mas a «rotunda» funcionará, também, como zona de informação e repouso, com plantas de localização do visitante, cadeiras e possibilidade de consulta de informação em diversos suportes, nomeadamente em ecrã de computador. Haverá remissão para o portal associado à exposição, bem como passagem de filmes da responsabilidade de Rui Trindade ou Diana Andringa, e simulações e aplicações diversas. A preocupação foi, desde o início, trabalhar, tanto quanto possível, com objectos reais e não com réplicas ou imagens. Daí a inclusão de máquinas e peças da linha de montagem de veículos da Autoeuropa, do posto de despacho de uma central eléctrica, de uma maqueta gigante da cidade de Lisboa, de uma mesa sísmica, de modelos utilizados no teste das barragens, etc. No sector dedicado à floresta estarão em evidência todas as fileiras (eucalipto, pinho e cortiça), ilustradas desde a árvore até aos objectos de consumo corrente. O núcleo da Química será animado por uma visita virtual ao complexo da Quimigal, no Barreiro, enquanto no da Metalurgia estará em evidência o pioneirismo da fábrica Oliva. Mas nem sempre esta filosofia foi possível: a ideia de expor um dos primeiros carros eléctricos de Lisboa e carruagens de comboio revelou-se impossível, porque as portas da Cordoaria não permitiam a respectiva passagem, não sendo aconselhável a opção de desmontar as peças para voltar a montá-las no interior. «Aqui, tivemos que ir para outro tipo de soluções - diz Henrique Cayatte -, recorrendo a imagens animadas de carruagens do Metro e do caminho-de-ferro a entrar em túneis». Nada que assuste este «designer» de 45 anos que já passou pela concepção gráfica de jornais e revistas («Público» e «Egoísta») ou pela Expo-98 (sinalética, «design» do Pavilhão de Portugal, etc.) mais que não seja porque «o ''design'' não é outra coisa senão pegar nos constrangimentos (de espaço e outros) e resolvê-los em equipa». Houve que saber jogar com as diferentes variáveis e apelar a todos os sentidos, articulando os efeitos sonoros, os jogos de luz, a leitura do espaço ou as tecnologias multimédia. No fundo, «um trabalho total, colectivo e com incidências a níveis muito diferentes». Neste caso concreto teve a vantagem de jogar em casa ou, pelo menos, de conhecer bem o espaço em que se ia mover. Em 2000 concebera, também na Cordoaria, a exposição «Liberdade e Cidadania - 100 Anos Portugueses». A diferença é que esta se baseava praticamente a cem por cento em fotografias, filmes, ilustrações, etc., e não em objectos reais, como máquinas, equipamentos eléctricos ou construções. Por isso, «a encenação do espaço teve que ser completamente diferente». Maqueta de uma das cinco rotundas que funcionarão como separadores entre diferentes zonas temáticas O espaço é rigorosamente o mesmo, salvo algumas dezenas de metros no topo poente do edifício, agora ocupados por uma exposição permanente da Marinha. Há também uma pequena diferença na entrada, já que esta se fará pelo lado virado ao rio do torreão nascente. Logo aí o visitante encontrará um pré-núcleo da exposição intitulado «Raízes», dedicado aos antecedentes da engenharia do século XX e onde, para marcar a precariedade da tecnologia da época, a iluminação eléctrica falhará ocasionalmente. No extremo oposto, percorrida a longa «recta» que corresponde à fachada virada ao rio, haverá uma viragem à direita, na direcção do auditório, da cafetaria, da livraria e dos espaços dos patrocinadores, rematando a exposição com um pós-núcleo, esse sim, assumidamente virtual, chamado «Desafios». Ainda que ao longo da exposição haja desníveis e degraus, houve a preocupação de não criar barreiras à movimentação dos deficientes, existindo, por outro lado, um plano de segurança e evacuação, dadas as características do espaço e o número de visitantes esperado. O trabalho de «Engenho e Arte» não se esgota, no entanto, na exposição propriamente dita. Prolonga-se, desde logo, através de um portal (www.engenharia.com.pt). Este, não só permite aprofundar alguns dos temas tratados na Cordoaria como responder às necessidades específicas de determinadas camadas de público, como os estudantes ou professores do secundário, os estudantes e investigadores na área da engenharia e o público em geral. Em termos de edições e, além do catálogo da exposição propriamente dito, haverá dois outros tipos de publicações: um livro de referência chamado Engenho e Obra, editado pelo principal patrocinador do evento, a Somague (incluirá resumos dos principais temas tratados, bem como uma selecção de imagens com eles relacionadas); uma colecção de livros intitulada «A Engenharia em Portugal no Século XX» e que corresponderá a textos produzidos pela equipa de investigação do projecto. A exposição conta, ainda, com o apoio dos Ministérios da Cultura e da Educação e dos Programas Operacionais da Sociedade da Informação e da Ciência, Tecnologia e Inovação. Decorrerá de 8 de Janeiro a 2 de Março de 2003.
http://semanal.expresso.pt/vidas/artigos/interior.asp?edicao=1569&id_artigo=ES76913